Pedaços de tempo, todos em mim

Para a Sara, sobre o tempo.

“Não temos tempo, porque alguém – principalmente nós próprios – o gastamos e rompemos com procuras indecentes. Portanto, é preciso mais do que tempo. É preciso um litro e meio de coragem para dois litros de tempo. Proporção descuidada, mas cuidadosamente analisada. E as caixinhas? As caixinhas são de Pandora, mistérios imperscrutáveis. São caixinhas de amor, de amizade, de ódio, de paz ou memórias. São sítios onde se arrumam as brisas complexas que andam dentro do crânio e do esterno. O cérebro e o coração. Oh, dificuldade colossal. Separem-se, essa luta de titãs nem sempre conduz a alguma vitória.”

146113591

Sobre o hoje, o que somos hoje, o que esperamos hoje, o que seremos amanhã. As entranhas enrolam-se até darem nó. Andamos enjoados por não saber de que cor é a chuva que cairá amanhã do céu. O tempo, o tempo que é tapado com uma renda de bilros. Um texto sobre a vontade de ter tempo e senti-lo a escapar por entre as sombras laranja da inexequibilidade. O pavor de não ter tempo é igual ao receio de o ter e de não o encher. Encher de coisas, de ideias, de caixinhas, de lembranças. As ideias não existem a não ser que sejam partilhadas e materializadas ao sabor da vontade. A inexequibilidade. Encher de ideias requer o dobro do esforço. Tê-las, maturá-las, odiá-las e amá-las. Transformar as ideias em coisas, transformar as entranhas em bandejas de prata onde todos põem os dedos para se servirem avidamente dos canapés. Porque a fome é muita, a sede também, e a vontade de sugar as ideias alheias para as amachucar como folhas de jornais secas pelo sol é ainda maior.

Não temos tempo, porque alguém – principalmente nós próprios – o gastamos e rompemos com procuras indecentes. Portanto, é preciso mais do que tempo. É preciso um litro e meio de coragem para dois litros de tempo. Proporção descuidada, mas cuidadosamente analisada. E as caixinhas? As caixinhas são de Pandora, mistérios imperscrutáveis. São caixinhas de amor, de amizade, de ódio, de paz ou memórias. São sítios onde se arrumam as brisas complexas que andam dentro do crânio e do esterno. O cérebro e o coração. Oh, dificuldade colossal. Separem-se, essa luta de titãs nem sempre conduz a alguma vitória. E como não há sempre resultado neste debate circular, arrumamos as coisas em caixinhas. Para saber o que são, para saber de quem são, para saber ir buscá-las quando é necessário. Mil relógios de parede rodam os ponteiros em rotações opostas. Tempo, perdemo-lo e ganhamo-lo, às vezes temos tempo a mais. Porque pensar no tempo gasta tempo, tempo esse que devia ser usado a ter ideias e a concretizá-las. E aí vem a melancolia, o doce som de uma guitarra e uma sapiência muito própria. “Eu sou eu. O caráter é o destino. A história é Deus. E pronto!”, Coetzee dizia, e dizia muito bem.

Para quê gastar-me? Para quem perder-me? Não vale a pena esta agonia, o sol há-de nascer amanhã e eu estarei no mesmo sítio. Isso. É exatamente isso. Abre-se um buraco no chão e os cabelos pretos enrolam-se numa espiral de desespero durante esta queda de Atlas.  Pedaços de mim mesma. Pedaços de mim mesma que confluem em mim mesma. Pobre de mim. Farei o quê com pedaços de alma desestruturados? Farei-me a mim mesma. Pobre de mim. Sou pedaços dos outros, do espelho dos outros, do negro e da canela. Os cheiros, os toques em peles macias e ásperas das cicatrizes. Isto é tudo o que sou e que o tempo me deu. Pedaços de mim mesma sugadas de pedaços de outros seres, de outros tempos, de várias memórias. Sou assim. Eu, sou assim. É o que tiver que ser. Os dedos sujos de pegar nos canapés que são servidos em bandejas de prata vão apontar o dedo e rir. Rir muito muito alto, de escárnio. Desacato, desdém, desprezo, menosprezo.  Vão escrever, com sangue, a letra escarlate da vergonha. Lixem-se todos. Eu pus num balde vários litros de tempo e vários de coragem, numa proporção de dois para um e meio, e mexi com uma colher de pau gigante. Estilhacei os braços com o esforço. Somos nós todos, hoje. É o nosso tempo, hoje. Somos o desespero, hoje e amanhã. Mas há que ver que a beleza do tempo é não saber se ele existe depois. É não saber a quem pertence, quem o tem, quem o gasta. Vivemos no desespero de medir o tempo, de usufrui-lo, de emprega-lo. Pensamos tanto em usar o tempo que só o gastamos. E o tempo não volta a trás. É pena, ou não. Mas bebi até ao fim e trago-vos o resultado. Pedaços de mim, que vêm de vocês. E que tudo junto dá nisto. Eu própria. Riam-se agora.

Um “cris de coeur”

20 de Janeiro.

Spiral.

thats-not-my-problem-hillary-clinton

Pode ser porque, de forma consciente e racional, os cidadãos estadunidenses não viram o potencial em nenhuma mulher para assumir este cargo. Legítimo, se este argumento for a causa desta disparidade. Porém, existe outro motivo para a percepção dos eleitores ser moldada de forma parcial: os média. Segundo o estudo de Erika Falk, no artigo “Women for President”, os média criam um retrato complexo das candidatas femininas, como sendo inviáveis, incompetentes, irrelevantes. O facto de se salientar a diferença entre um candidato e outro pelo género revela o sexismo que domina, ainda, a cobertura mediática e a opinião dos eleitores.

Texto na íntegra

View original post

Um “cris de coeur”

 

thats-not-my-problem-hillary-clinton

 

Pode ser porque, de forma consciente e racional, os cidadãos estadunidenses não viram o potencial em nenhuma mulher para assumir este cargo. Legítimo, se este argumento for a causa desta disparidade. Porém, existe outro motivo para a percepção dos eleitores ser moldada de forma parcial: os média. Segundo o estudo de Erika Falk, no artigo “Women for President”, os média criam um retrato complexo das candidatas femininas, como sendo inviáveis, incompetentes, irrelevantes. O facto de se salientar a diferença entre um candidato e outro pelo género revela o sexismo que domina, ainda, a cobertura mediática e a opinião dos eleitores.

 

Texto na íntegra

Burkini: a essencial possibilidade de escolha

tumblr_nom3gvgyeu1qznwjno1_500

(…) O debate sobre a proibição do uso do burkini em França é conduzido pelos medos que ainda sentimos no que concerne a questões de género, de raça e de religião. É o medo das areias movediças da moralidade, das atitudes extremistas e mal informadas. Não queremos pagar na mesma moeda e por isso não sabemos como atuar. A proibição do uso do burkini não é uma questão que precisa de ser analisada apenas sobre o prisma da permissão ou proibição da utilização de uma peça de roupa. Porque não é uma peça de roupa, é uma afirmação política, religiosa, ideológica e moral. A reflexão deve debruçar-se sobre o motivo da obrigatoriedade da sua utilização ou proibição, tendo em conta o que o burkini representa.(…)

Texto na íntegra aqui

O “Trump Show”

trump3

(…) Utopias, ideias vendidas a preço de ouro: Donald Trump não devia ganhar as eleições. Donald Trump, e toda a sua equipa, oferecem algo que é impensável para os seus opositores: um país onde todos viverão na insegurança da intransigibilidade e alteração caprichosa e irresponsável das regras. Onde o cheiro a bolo da avó não existe porque os “velhos” não servem para nada e há bolos prontos nos hipermercados; onde as crianças não brincam cá fora porque as auto-estradas ocupam o espaço dos jardins; onde os bairros são cinzentos e néon da industrialização, cheios de poluição resultado da produção acelerada e crescente. Onde os problemas desaparecem através de medidas desadequadas e plenas de interesses políticos e económicos. Onde o sol quando nasce não é para todos. É um atentado aos direitos humanos. E o perfume serve para esconder a morbidez da mentira, da vergonha, da desonestidade. (…)

Texto na íntegra

O espetáculo de Dilma

 

dilma-rousseff

Fonte imagem: El País

(…) Importa mais a forma como somos persuadidos. O “impeachment” de Dilma passou de ser um acontecimento político e histórico, com repercussões graves, para ser um episódio de um “reality show”. Ouviram-se “Sim, sim, sim, sim”, ouviram-se gritos e choros a dizer “tchau, querida”, murmúrios de desespero e suspiros de alívio. Tudo filmado e transmitido em direto, ao vivo e a cores. Quem não se deixa levar por estes alvoroços? Mais do que uma crise político-social no Brasil, este caso levantou questões e ondas de revolta em várias partes do mundo. Pelo peso democrático, cultural e económico que terá mas, sobretudo, pelo espetáculo. Quem não ia ver foi obrigado a assistir, quem decidiu ignorar foi conquistado pelo “show”. (…)

Texto integral

A pele de todos

 

jesuischarlie-fileminimizer-620x330

Fonte: IPressjournal

(…) O desaire causado pelos ataques a que assistimos em vários pontos do mundo e o facto de vivermos a modernidade através do “ecrã global” de Lipovetsky levanta questões fundamentais sobre intenções e inércias. Para muitos, as redes sociais servem como meio de expressão da mágoa. Outros vivem num estado pleno de desinteresse (porque é longe e não matou nenhum dos nossos!). Os restantes impulsionam manifestações de horror em prol de direitos que nem compreendem na sua essência. Mas há, hoje, uma linguagem que parece ser universal: “Je suis quelque chose”. Expressão dos muitos, dos outros e dos restantes. Atente-se à distinção. (…)

 

Texto integral

CAVACICE AGUDA

cavaco-silva12

(…) 25/25. 25 DE JANEIRO DE 2016 É DATA DE VETO DO DIPLOMA QUE PROMULGAVA A ADOÇÃO POR CASAIS DO MESMO SEXO E AS ALTERAÇÕES À LEI DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ (IVG), APROVADO A 18 DE DEZEMBRO DO ANO CIVIL ANTERIOR. 25 É O NÚMERO DE VETOS POLÍTICOS UTILIZADOS POR ANÍBAL CAVACO SILVA DESDE QUE INICIOU AS FUNÇÕES COMO CHEFE DE ESTADO, EM MARÇO DE 2016. NÃO IREI INCORRER SOBRE AS COERÊNCIAS IDEOLÓGICAS ENTRE CAVACO SILVA, A SUA COR POLÍTICA E A DECISÃO DE VETO SOBRE ESTAS QUESTÕES. NÃO SERÁ ESSA A FORMA QUE UM CHEFE DE ESTADO (ALEGADAMENTE) LAICO, IMPARCIAL E JUSTO RECORRERÁ PARA FUNDAMENTAR E ARGUMENTAR AS SUAS DECISÕES. PIOR SERIA, VEJA-SE LÁ O CENÁRIO INCOGITÁVEL, VIVERMOS NUM PAÍS NO QUAL O PRESIDENTE DA REPÚBLICA PENSA NÃO TER NECESSARIAMENTE QUE FUNDAMENTAR E ARGUMENTAR AS SUAS DECISÕES DE UMA FORMA ROBUSTA E SEM LACUNAS. NÃO, NADA DISSO. (…)

Texto completo

O NOSSO AMOR, O NEGÓCIO DE MERKEL

merkel2

(…) Vamos ver que, legalmente, os senhores e as senhoras do mesmo género que se queiram casar podem fazê-lo. O que não quer dizer que ao nível do divino, do celeste e do Nosso Senhor Jesus Cristo isto seja bem aceite. Negócio é negócio. Não misturem negócio com amor. Amor é só para alguns, aqueles que são um casal composto por um homem e uma mulher. Os outros fecham apenas negócios altamente rentáveis (como o pagamento dos impostos em comunhão, por exemplo) mas isso não quer dizer que se amem como um casal heterossexual. Certo? Ok, Merkel querida, já compreendemos a diferença. Afinal não é o amor que quebra todas as fronteiras, é o negócio. (…)

Texto completo

AN OPEN LETTER TO SERENE RESTLESSNESS

481665274

Dear World,

I was born in a country where yelling is free of charge. Dancing and singing is allowed. And the menu is the customer’s choice. I read about freedom and censorship, see the teaching material and feel what goes to and fro on shifting ground. This is the truth that I know, fortunately. The denial of liberty was never tangible to me, I know only the task of dedicating myself to learning, to the absorption of Morality and the practice of good habits, compassion and kindness, ethics and respect for our neighbor. A precept established by my dear parents, who always planned to offer me a view of the World as being something sparkling but with no filters. School was always within my reach (there were days when I was so excited by the obligation), as was the hospital (even if governed by slow and exasperating processes), medications – while indispensable were also part of the cure (an option which is not a reality for everyone), libraries were victims of my bookish greed and I never felt cold from lack of clothing. The stability and consistency of these dynamics were always certainties to me, little valued and thought to be the same for everyone. Now that I am grown, my reality is different, my vision is disillusion. Nothing is the same for all, opportunities are not linear and happiness is not impartial. I fear I will continue to grow along with the knot in my stomach, when scenes of atrocity and injustice unfold before my eyes. But there is a factor that calms my mind: I belong to a community that is called the European Union. I was born in Portugal. A member of the EU since 1986, my country is in a bubble of organisation and principles, regulations and procedures, common to the 28 Member States. There is no better impression than feeling the support and comfort we find at the epicentre of a community joined by the same values and principles, governed by common rules and objectives. Knowing that liberty prevails, the monumentality of choice is essential, the power to vote is paramount, or human rights are the beat to which we march, a deep sigh of relief. Dear World, I assure you of this: I know of no sensation like wandering through these Member States and feeling the confidence of being at home. An expanded European Union is like a house with more rooms. It is like a Palace, the space is expanded but the family is strict about the coherence of the house rules. It is necessary to maintain order with so many people and so much space to coordinate. Even so, my feeling is not one of frivolity or revelry. There goes my carefree adolescence and, now that life today demands deliberations, solutions and decisions, I feel the burden of Time and Space on my shoulders. The years have passed, continue to pass and will go on passing. I feel that, for me, they are passing at a devastating speed, and the effects are overwhelming. Which way should I turn? I benefit from a sufficient offer, but the real choice is not simple or inconsequential. I believe I share this feeling with various citizens of the European Union. The despair of wasted potential is the feeling that hits us when we see the hour of our emancipation arrive. The European Union has so much to offer us. That’s the truth. But how can I enjoy these rights and fulfil those obligations as a European citizen? It is the Book of Unrest. We become increasingly aware that the world is not just, wholesome or harmonious. The world is not to blame. We are the ones to blame. We are the ones who created it. But life moulded by disappointment at such a tender age will determine the whole future. Changing this disillusioned feeling is the challenge of the European Union. How? By investing in that which is close to our hearts. I witness the departure of close friends, leaving for places that are not close to me. You take my heart and my hope with you. Is this not the worst that is to come? The giving up, the pain of leaving it behind. But I begin to understand that London is nearby and I can go to Barcelona for lunch, if I wish. And I do. Who knows? I may just pick up my material life, and bet on the ready-set go-option, too. But do you know what I lack, World? Purchasing power. The power to decide if I want to stay in my country or in another that gives me a job, that gives me stability, peace of mind and a truce in this endless fight. I wonder if we could send bottled tears to all Member States? It is the feeling of losing the ones dearest to us, who leave everything but their presence. I don’t want to have to go. I want to choose whether I stay or whether I go. This is one of the challenges of such an expanded European Union. Cultural borders cannot be eliminated, but they can be mitigated. To help us always feel at home. And now that we have so much in common, it would be so good if we could get a little bit closer and create a cheap and efficient transportation network. Because the youth around here do not have money, but they have a great desire to embrace those whom necessity took away. The youth around here feel lucky to belong to a community that fights for the empire of liberty, the monumentality of choice, the power to vote, human rights and a fair trial. So they would like for it to be easier to move around in this big Palace. We have common languages, common currency, common goods and common values. All that is left is to believe that the European Union is our home. That we belong here, that we should grow up in her bosom. For that reason, dear World, I know that I am being selfish and unfair in feeling lucky to be in this bubble. I live in an existential dilemma for that very reason. But we cannot give up. Not even on ourselves.

Yours faithfully,

Ana Margarida Meira

Texto em português no ‘Observador’